27/10/2025

África na corrida pelo hidrogênio: o novo protagonista da transição energética global

A transição energética mundial ganhou um novo epicentro geográfico. Enquanto Europa e Ásia aceleram suas metas de descarbonização, a África emerge como protagonista estratégico na corrida pelo hidrogênio verde, posicionando-se como potencial fornecedor de até 10% da demanda global até 2050. Este movimento representa não apenas uma oportunidade econômica de US$ 60-120 bilhões ao PIB africano, mas também um teste crucial sobre como equilibrar desenvolvimento sustentável com justiça energética em escala continental.

Por que a África tornou-se estratégica

O continente africano reúne três vantagens competitivas fundamentais que explicam seu papel central nesta corrida. Primeiro, recursos renováveis excepcionais: 10 TW de potencial solar, 350 GW hidrelétrico e 110 GW eólico, com fatores de capacidade que alcançam 69% para energia eólica em regiões como a Namíbia. Segundo, proximidade geográfica com a Europa, principal mercado consumidor que estabeleceu meta de importar 10 milhões de toneladas de hidrogênio até 2030 através da estratégia REPowerEU. Terceiro, a África do Sul detém aproximadamente 90% das reservas globais de metais do grupo da platina, componentes críticos para eletrolisadores de membrana de troca de prótons.

Estes fatores catalisaram investimentos massivos. A pipeline anunciada totaliza 114 GW de capacidade de eletrolisadores, concentrados em seis países pioneiros que formaram a Aliança Africana de Hidrogênio Verde em 2022: Egito, Quênia, Mauritânia, Marrocos, Namíbia e África do Sul. Posteriormente expandida para 11 nações, a aliança coordena projetos que vão desde o megaempreendimento Aman na Mauritânia (US$ 40 bilhões, 70 GW) até iniciativas pioneiras como o Daures Green Hydrogen Village na Namíbia, primeira comunidade net-zero do continente.

Realidade além das promessas

Apesar do potencial extraordinário, a materialização destes projetos enfrenta desafios estruturais significativos. Estudos recentes publicados na Nature Energy revelam que apenas 2,1% dos locais africanos seriam economicamente competitivos mesmo com políticas agressivas de mitigação de riscos, considerando cenários de altas taxas de juros. O custo médio de produção permanece entre €4,2-4,9/kg sem instrumentos de redução de riscos, comparado a €3-5/kg projetados para Rotterdam em 2030.

Mais crítico ainda: até outubro de 2024, menos de 0,5% dos projetos em regiões emergentes haviam garantido investimentos comprometidos, versus 9% globalmente. Apenas 13 MW dos 114 GW planejados alcançaram decisão final de investimento até 2023. A Agência Internacional de Energia advertiu que uma indústria de hidrogênio verde em larga escala na África até 2030 é improvável, com apenas 5% dos projetos anunciados provavelmente operacionais neste prazo.

As barreiras transcendem o financeiro. O paradoxo infraestrutural é contundente: mais de 50% da população da África Subsaariana vive sem eletricidade, enquanto 80% dos projetos de hidrogênio são destinados à exportação. Adicionalmente, a intensidade hídrica da eletrólise (18-25 litros por kg de hidrogênio) colide com a realidade de 400 milhões de pessoas sem acesso à água potável na região. Projetos de grande escala exigem dessalinização, que por sua vez demanda energia significativa, criando ciclos interdependentes complexos.

Lições para o Brasil e América Latina

A experiência africana oferece insights valiosos para o Brasil, que emergiu como concorrente direto nesta corrida. Com a Lei do Hidrogênio Verde promulgada em agosto de 2024 e projetos como o hub do Porto de Pecém em desenvolvimento, o país pode aprender três lições fundamentais da trajetória africana.

Primeira: evitar dependência excessiva de exportações. A orientação predominante para mercados externos cria vulnerabilidade à demanda internacional e riscos de padrões neocoloniais de desenvolvimento. Segunda: priorizar aplicações domésticas que garantam benefícios diretos à população local, evitando o paradoxo de exportar energia enquanto déficits internos persistem. Terceira: estruturar acordos que assegurem transferência tecnológica efetiva e capacidade local de reprodução, não apenas fornecimento de matéria-prima.

O Brasil possui vantagens comparativas distintas: matriz energética já 85% renovável, infraestrutura de etanol existente que pode servir como plataforma complementar, e potencial único do “hidrogênio verde musgo” a partir de 291 milhões de toneladas anuais de resíduos agroindustriais. Contudo, requer estratégia que equilibre competitividade global com impacto socioeconômico interno.

Casos de sucesso reais

Apesar dos desafios sistêmicos, projetos operacionais demonstram viabilidade quando adequadamente estruturados. O Egypt Green Hydrogen na Zona Econômica do Canal de Suez realizou a primeira exportação mundial de amônia verde em novembro de 2023 para a Índia, operando com 100 MW de eletrolisadores e produzindo 15.000 toneladas de hidrogênio verde anualmente. O projeto venceu licitação H2Global de €397 milhões para fornecimento à União Europeia até 2033, com entregas iniciando em 2027.

Na Namíbia, o Daures Green Hydrogen Village avança como projeto piloto integrado, com 18 toneladas de hidrogênio e 100 toneladas de amônia verde por ano na fase inicial, escalável para 67 GW de energia renovável e 180.000 toneladas de hidrogênio na capacidade máxima. A iniciativa foi selecionada pela UNIDO como projeto de demonstração, recebendo financiamento para produção de fertilizantes até 2027.

O caminho à frente

A corrida africana pelo hidrogênio verde representa um microcosmo das tensões inerentes à transição energética global: como conciliar urgência climática com justiça social, competitividade econômica com soberania tecnológica, demanda internacional com necessidades locais. Para empresas brasileiras e latino-americanas, observar esta dinâmica não é exercício acadêmico, mas imperativo estratégico.

A questão central transcende volumes de produção ou custos nivelados: trata-se de definir modelos de desenvolvimento que evitem replicar padrões históricos de exploração sob roupagem verde. África e América Latina compartilham não apenas potencial técnico comparável, mas desafios estruturais similares que demandam colaboração Sul-Sul genuína.

O hidrogênio verde africano será competitivo? Tecnicamente possível, economicamente incerto, socialmente contestado. Mas precisamente nesta complexidade reside a relevância do caso africano: não como modelo a replicar integralmente, mas como laboratório cujas lições, sucessos e fracassos, podem informar trajetórias mais equilibradas para outros mercados emergentes na construção de uma economia verdadeiramente sustentável do hidrogênio.

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