Em outubro de 2025, Curitiba consolidou sua posição como polo estratégico na economia do hidrogênio renovável ao inaugurar a primeira planta-piloto do Brasil dedicada à produção deste combustível sem consumo de água potável. O projeto Biogas-to-H2 Paraná, instalado no Campus Politécnico da Universidade Federal do Paraná, representa um avanço técnico significativo no contexto da transição energética nacional, combinando inovação tecnológica com aproveitamento de resíduos orgânicos.
A transformação de um paradigma produtivo
O Brasil acumula mais de R$ 290 bilhões em projetos de hidrogênio de baixa emissão anunciados em 18 estados, segundo dados recentes do Ministério de Minas e Energia. Neste cenário de crescimento acelerado, a planta paranaense se diferencia por utilizar reforma catalítica a seco, processo que dispensa completamente a água no sistema de conversão. Tradicionalmente, a eletrólise da água com energia renovável é o método predominante para produção de hidrogênio verde, mas a abordagem curitibana oferece uma alternativa tecnicamente viável em regiões com limitações hídricas.
O consórcio, liderado pela Copel Geração e Transmissão, reúne instituições públicas, privadas e de pesquisa, incluindo Sanepar, Compagas, CIBiogás e o Instituto Senai de Inovação em Eletroquímica. O projeto recebeu investimento de R$ 7,6 milhões e foi selecionado entre 70 propostas submetidas à chamada pública da Copel em 2023, sendo posteriormente incorporado aos cinco projetos estratégicos do plano de investimentos dos Fundos Climáticos de Descarbonização da Indústria.
Tecnologia e processo: da matéria orgânica ao hidrogênio
A planta opera através de um ciclo integrado que inicia com resíduos alimentares do Restaurante Universitário da UFPR. O material orgânico passa por biodigestão anaeróbia em quatro etapas sequenciais: hidrólise, acidogênese, acetogênese e metanogênese, produzindo biogás composto majoritariamente por metano e dióxido de carbono.
A reforma a seco envolve conversão de gases de efeito estufa em temperaturas entre 650°C e 850°C, utilizando catalisadores especializados. Neste processo, os hidrocarbonetos e o dióxido de carbono são convertidos em gás de síntese, uma mistura de hidrogênio e monóxido de carbono. Posteriormente, sistemas avançados de purificação por PSA separam seletivamente o hidrogênio por diferenças de pressão, seguidos por armazenamento e conversão final em eletricidade através de células a combustível.
A escolha pela reforma a seco oferece vantagens operacionais relevantes. Diferentemente das rotas convencionais que utilizam reforma a vapor, este método não requer remoção prévia de dióxido de carbono do biogás, permitindo que ambos os componentes sejam convertidos simultaneamente. Esta característica reduz custos de pré-tratamento e simplifica a cadeia produtiva, aspectos críticos para viabilidade econômica em escala industrial.
Escalabilidade e potencial de replicação
A capacidade inicial da planta está dimensionada para 100 toneladas anuais de hidrogênio renovável. Contudo, a infraestrutura existente no Paraná oferece potencial de expansão expressivo. A Sanepar opera 232 estações de tratamento com sistemas anaeróbicos, gerando aproximadamente 62.225 Nm³ de biogás diariamente. Quando projetado para toda essa infraestrutura, o potencial estadual alcança 7.000 toneladas anuais de hidrogênio renovável, consolidando a Região Metropolitana de Curitiba como centro de referência neste segmento.
O projeto incorpora sistemas de captura de carbono, projetando mitigação de até 325 mil toneladas de CO₂ equivalente por ano e gerando créditos de carbono. Este mecanismo permite alcançar emissões negativas quando integrado à captura do CO₂ liberado no processo. Um sistema de certificação baseado em blockchain, já em desenvolvimento pela Copel, garantirá rastreabilidade e transparência para o hidrogênio produzido.
Aplicações estratégicas e impacto econômico
O hidrogênio de baixa emissão produzido será destinado a aplicações industriais no ecossistema regional. Curitiba abriga a Peróxidos do Brasil, que produz 250 mil toneladas anuais de peróxido de hidrogênio, respondendo por 60% da demanda latino-americana. Esta proximidade entre produção e consumo reduz custos logísticos e viabiliza comercialmente a cadeia produtiva local.
O hidrogênio renovável possui grande potencial para indústrias de difícil eletrificação, como siderurgia e setor químico, onde pode substituir processos intensivos em carbono. Além do combustível, o sistema gera biofertilizantes de alta qualidade através do digestado produzido na biodigestão anaeróbia, contribuindo para práticas agrícolas sustentáveis e fechando ciclos de aproveitamento de resíduos.
Alinhamento com marcos regulatórios e políticas nacionais
A Lei 14.948/2024 estabeleceu o Marco Legal do Hidrogênio no Brasil, diferenciando hidrogênio de baixa emissão, renovável e verde, com critérios baseados em emissões de gases de efeito estufa e fontes energéticas utilizadas. O projeto paranaense se enquadra como hidrogênio renovável, produzido exclusivamente a partir de fontes energéticas renováveis como biomassa.
O alinhamento ao Programa Nacional do Hidrogênio fortalece a posição do projeto como laboratório de validação tecnológica para replicação em escala industrial. A expectativa institucional é que novas plantas sejam instaladas em diferentes regiões nos próximos anos, ampliando a capacidade nacional e consolidando o Brasil como liderança na transição energética global.
Perspectivas e desafios para o setor
O Brasil possui potencial para liderar a produção de hidrogênio verde, mas ainda enfrenta gargalos em regulação e estímulo a investimentos. A planta curitibana demonstra que rotas alternativas à eletrólise da água são tecnicamente viáveis e economicamente promissoras, especialmente quando integradas a infraestruturas existentes de tratamento de resíduos e saneamento.
A iniciativa representa uma convergência entre desafios ambientais e oportunidades econômicas. Ao transformar resíduos que seriam descartados em aterros sanitários em vetor energético de alto valor agregado, o projeto exemplifica princípios de economia circular aplicados à transição energética. A presença de instituições de pesquisa, empresas e órgãos governamentais no consórcio cria um ecossistema favorável à inovação contínua e transferência tecnológica.
Para empresas do setor B2B, o projeto sinaliza a maturação de tecnologias alternativas de produção de hidrogênio renovável e abre perspectivas para parcerias estratégicas em toda a cadeia de valor, desde fornecimento de equipamentos e catalisadores até aplicações industriais e desenvolvimento de infraestrutura logística.
