21/10/2025

Airbus e o projeto ZEROe: O futuro da aviação movida a hidrogênio

A indústria aeronáutica global enfrenta seu maior desafio desde a introdução da turbina a gás: descarbonizar completamente as operações de voo comercial. Neste contexto, a Airbus emerge como protagonista com o projeto ZEROe, uma iniciativa ambiciosa que promete revolucionar o transporte aéreo através da propulsão por hidrogênio. Embora o cronograma tenha sido recentemente ajustado, os avanços tecnológicos alcançados e o ecossistema de parcerias construído demonstram que a aviação com emissão zero deixou de ser ficção científica para tornar-se uma inevitabilidade tecnológica.

A dimensão estratégica do projeto ZEROe

Lançado em setembro de 2020, o projeto ZEROe representa um investimento estratégico da Airbus para desenvolver a primeira aeronave comercial com emissão zero de carbono. A iniciativa inicialmente projetava entrada em serviço até 2035, mas em fevereiro de 2025, a empresa anunciou um ajuste significativo no cronograma, adiando a operação comercial para o período entre 2040 e 2045.

Este adiamento, longe de representar um retrocesso, reflete maturidade estratégica. A Airbus reconheceu que o desenvolvimento simultâneo de tecnologias de propulsão, infraestrutura de abastecimento e frameworks regulatórios demanda mais tempo do que inicialmente estimado. Guillaume Faury, CEO da Airbus, destacou que a infraestrutura necessária não está avançando no ritmo inicialmente previsto, especialmente na produção de hidrogênio verde em escala industrial.

A decisão estratégica mais recente da Airbus consolida a tecnologia de células de combustível como método de propulsão preferencial. Este sistema converte hidrogênio e oxigênio em eletricidade através de reação química, produzindo apenas vapor de água como subproduto. O design atual prevê quatro motores elétricos de 2 megawatts cada, alimentados por sistemas de células de combustível supridos por dois tanques de hidrogênio líquido.

Marcos tecnológicos e validação de conceito

Os progressos técnicos alcançados pela Airbus validam a viabilidade do conceito. Em junho de 2023, a empresa completou com sucesso testes de sistema de célula de combustível a 1,2 megawatts na Alemanha, no Electric Aircraft System House, o teste mais potente já realizado na aviação para aeronaves de grande porte. Este marco foi seguido, no final de 2023, pela primeira ativação completa do sistema integrado de propulsão a hidrogênio.

O projeto Blue Condor representa outro avanço significativo. Em novembro de 2023, a Airbus realizou o primeiro voo totalmente movido a hidrogênio utilizando um planador modificado Arcus-J sobre Nevada. O objetivo principal foi estudar as trilhas de condensação produzidas pela combustão de hidrogênio e comparar suas emissões com motores convencionais a querosene.

Os dados coletados são cruciais: embora a combustão de hidrogênio elimine emissões de CO₂, ela produz aproximadamente 2,6 vezes mais vapor de água que o querosene e ainda gera óxidos nitrosos. Compreender completamente o impacto climático dessas emissões não-CO₂ é fundamental para validar os benefícios ambientais da tecnologia.

Desafios técnicos e soluções inovadoras

A transição para hidrogênio apresenta desafios de engenharia substanciais. O hidrogênio possui densidade energética por volume significativamente menor que o querosene (8,5 MJ/L versus 35 MJ/L), exigindo maior volume de armazenamento. Além disso, o armazenamento em forma líquida requer tanques criogênicos que mantenham temperaturas de -253°C ou inferiores.

A Airbus estabeleceu Centros de Desenvolvimento ZEROe na Alemanha e França dedicados exclusivamente ao desenvolvimento de tanques criogênicos economicamente viáveis. Em colaboração com a Air Liquide Advanced Technologies, a empresa desenvolveu o Liquid Hydrogen BreadBoard em Grenoble, França, para enfrentar os desafios de manuseio e distribuição de hidrogênio líquido durante o voo. Testes terrestres integrados estão planejados para 2027 em Munique.

O gerenciamento térmico representa outro desafio crítico. Pesquisadores desenvolveram uma abordagem inovadora onde o hidrogênio líquido serve simultaneamente como combustível e meio de resfriamento para sistemas de energia críticos, otimizando a eficiência energética global da aeronave.

Ecossistema de parcerias e infraestrutura

A viabilização comercial da aviação a hidrogênio transcende a capacidade tecnológica de qualquer empresa isolada. A Airbus construiu metodicamente uma rede abrangente de parcerias estratégicas.

Em outubro de 2020, a empresa criou a Aerostack GmbH, joint venture com a ElringKlinger (90% Airbus, 10% ElringKlinger), especificamente para desenvolver pilhas de células de combustível aeronáuticas. Em junho de 2025, durante o Paris Air Show, a Airbus e a MTU Aero Engines assinaram um memorando de entendimento para progredir conjuntamente na propulsão por células de combustível.

O programa “Hydrogen Hubs at Airports” já conta com mais de 220 aeroportos signatários em 13 países, incluindo Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Noruega e Estados Unidos. Adicionalmente, a Airbus mantém engajamento ativo com mais de 10 companhias aéreas, incluindo Delta Air Lines, Scandinavian Airlines, EasyJet e Korean Air, para estudar conjuntamente a implantação futura de aeronaves movidas a hidrogênio.

Viabilidade econômica e apoio regulatório

Estudos comissionados pelas iniciativas Clean Sky 2 e Fuel Cells & Hydrogen 2 Joint Undertakings indicam que o hidrogênio poderia adicionar menos de €18 por passageiro em voos de curta distância, enquanto reduz o impacto climático entre 50% e 90%. Esta relação custo-benefício, combinada com o potencial de produção de hidrogênio verde a custos decrescentes, fundamenta a viabilidade econômica de longo prazo.

O apoio regulatório está avançando sistematicamente. Em dezembro de 2024, a FAA publicou seu Hydrogen-Fueled Aircraft Safety and Certification Roadmap, estabelecendo metas para ações de curto prazo até 2028 e médio prazo entre 2028 e 2032. Paralelamente, a EASA realizou o primeiro workshop internacional sobre certificação de aeronaves movidas a hidrogênio.

O programa Clean Aviation, parte do Horizon Europe, está fornecendo financiamento substancial. A terceira chamada de propostas, anunciada em fevereiro de 2025, apresenta financiamento total da União Europeia de até €380 milhões, correspondendo a €950 milhões de esforço total de pesquisa.

Estratégia dual: SAF e Hidrogênio

A Airbus adota pragmaticamente uma estratégia dual para descarbonização. Enquanto desenvolve tecnologia de hidrogênio para solução de longo prazo, a empresa simultaneamente avança com Combustível Sustentável de Aviação (SAF) para redução de emissões no curto e médio prazo.

No Airbus Summit 2025, a empresa anunciou planos para uma aeronave de corredor único de próxima geração capaz de operar com até 100% de SAF, com entrada em serviço projetada para a segunda metade da década de 2030. Esta abordagem permite progressão contínua na descarbonização enquanto as tecnologias de hidrogênio amadurecem completamente.

Perspectivas e conclusão

O adiamento do cronograma ZEROe para 2040-2045 reflete não abandono de compromissos, mas realismo estratégico sobre a magnitude dos desafios. Como afirmou Bruno Fichefeux, chefe de Programas Futuros da Airbus: “O hidrogênio está no centro do nosso compromisso em descarbonizar a aviação. Embora tenhamos ajustado nosso cronograma, nossa dedicação ao voo movido a hidrogênio permanece inalterada.”

Os próximos marcos críticos incluem testes terrestres integrados em 2027 em Munique e maturação contínua de tecnologias de armazenamento, distribuição e propulsão. Com mais de 220 aeroportos engajados, dezenas de companhias aéreas parceiras e financiamento substancial da União Europeia, o ecossistema necessário está sendo construído metodicamente.

Para o Brasil, com imenso potencial de produção de hidrogênio verde através de energia renovável e presença significativa da Airbus no país, a aviação a hidrogênio representa oportunidade estratégica de liderança na transição energética global.

A era da aviação comercial com emissão zero, embora mais distante do que inicialmente projetado, está em trajetória viável rumo à realidade comercial.

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