O Brasil posiciona-se estrategicamente como um dos protagonistas globais na produção de hidrogênio verde (H2V), desenvolvendo uma arquitetura robusta de Hydrogen Valleys que promete transformar a matriz energética e industrial do país. Com investimentos anunciados superiores a R$ 454 bilhões e mais de 111 iniciativas em desenvolvimento, o território brasileiro emerge como laboratório de inovação para a transição energética global.
A arquitetura dos Hydrogen Valleys brasileiros
Diferentemente de projetos isolados de produção, os Hydrogen Valleys brasileiros funcionam como ecossistemas industriais integrados, conectando toda a cadeia de valor: produção, transporte, armazenamento, transformação em derivados e exportação. Essa abordagem sistêmica representa uma vantagem competitiva fundamental em relação a outros players globais.
O conceito materializa-se em hubs geograficamente estratégicos, aproveitando a abundância de recursos renováveis do país e infraestrutura portuária já estabelecida. Atualmente, 15 estados brasileiros desenvolvem projetos relacionados ao H2V, evidenciando a capilaridade nacional dessa transformação energética.
Complexo do Pecém: o epicentro da revolução verde
O Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), localizado a 50 quilômetros de Fortaleza, consolida-se como referência nacional e um dos maiores hubs de H2V globalmente. Sua estrutura diferencia-se por um modelo de governança inovador: 70% pertence ao Governo do Ceará e 30% ao Porto de Roterdã, garantindo conexão direta com mercados europeus.
Números que impressionam:
- Investimentos totais de aproximadamente R$ 21,4 bilhões
- Capacidade de eletrólise planejada de 5 GW (superando a atual capacidade renovável total do Ceará)
- 200 hectares destinados exclusivamente à produção de H2V
- Corredor de exportação Pecém-Roterdã estabelecido desde maio de 2021
Entre os projetos âncora destacam-se a Fortescue Future Industries (R$ 20 bilhões para planta de 1,2 GW), Casa dos Ventos (2,4 GW de eletrólise), AES Brasil (800 mil toneladas/ano de amônia verde) e a norueguesa Fuella AS (R$ 9 bilhões). A EDP já produziu a primeira molécula de H2V do Brasil em dezembro de 2022, validando tecnologicamente o hub.
Outros polos estratégicos em desenvolvimento
Rio Grande do Norte destaca-se pelo foco em pesquisa e desenvolvimento, abrigando o primeiro laboratório brasileiro para produção de combustível sustentável de aviação (SAF). O estado, maior produtor de energia eólica do país, desenvolve parcerias entre Petrobras, SENAI e empresas privadas para aplicações industriais diversificadas.
Rio de Janeiro, através do Porto do Açu, estrutura hub com 400 mil toneladas/ano de amônia verde planejadas, integrando soluções de descarbonização siderúrgica com ferro briquetado quente (HBI).
Pernambuco avança em inovação tecnológica com o TechHub Hidrogênio Verde no Porto de Suape, investimento privado de R$ 61 milhões focado em melhorias na eficiência de eletrólise e plataformas digitais de rastreabilidade.
O Rio Grande do Sul diferencia-se pela abordagem de industrialização distribuída, com 12 empresas habilitadas em programa governamental que totaliza R$ 102,4 milhões em subvenções, projetando 20 mil empregos diretos e indiretos nos próximos cinco a dez anos.
Marco regulatório: fundação para crescimento sustentável
A Lei nº 14.948, sancionada em agosto de 2024, estabeleceu bases sólidas para o setor através de três eixos estruturantes:
- Regulatório: ANP como entidade reguladora de produção, transporte e comercialização
- Governança: Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão com programas específicos de desenvolvimento
- Certificação: Sistema Brasileiro de Certificação do Hidrogênio (SBCH2) com interoperabilidade internacional
O sistema de certificação, embora voluntário, oferece benefícios estratégicos incluindo acesso a financiamento ESG, integridade contra dupla contagem de emissões e alinhamento com exigências de mercados internacionais premium.
Oportunidades estratégicas de negócios
Amônia verde como vetor de exportação
A amônia verde tornou-se a rota mais viável economicamente para transporte de H2V a longas distâncias. Para o Brasil, representa dupla oportunidade:
- Substituição de importações: O país importa pesadamente fertilizantes nitrogenados. Produção local representa segurança de cadeia, redução de volatilidade cambial e selo verde para o agronegócio brasileiro.
- Mercado marítimo: Crescente demanda por combustíveis de baixo carbono na navegação internacional, com regulação obrigatória progressiva a partir de 2027.
Combustíveis sustentáveis de aviação
A demanda projetada para SAF no Brasil alcança 3 bilhões de litros em 2027 e 9 bilhões em 2037. A ANP já permite blending de até 50% de SAF em combustível fóssil, com obrigatoriedade para aviação internacional a partir de 2027.
Descarbonização industrial
Setores de difícil eletrificação encontram no H2V solução estratégica:
- Siderurgia através de redução direta de minério
- Refino de petróleo para dessulfurização e hidrotratamento
- Indústrias química, de vidro, cimento e papel
Desafios e realismo estratégico
Apesar do otimismo fundamentado, obstáculos significativos permanecem. O custo atual dos eletrolisadores (US$ 4-6/kg de H2V) só alcançará competitividade real em 2030. A eletrólise demanda 9-10 toneladas de água por tonelada de H2V produzida, exigindo infraestrutura robusta de reuso.
A suspensão do projeto emblemático da Unigel na Bahia em setembro de 2025, devido a dificuldades financeiras, evidencia riscos de execução. Divergências em padrões internacionais de certificação e desenvolvimento lento da demanda doméstica representam desafios adicionais.
O risco de “enclave exportador” — modelo de baixo valor agregado — exige atenção estratégica para desenvolvimento de indústrias downstream no território nacional.
Perspectiva competitiva global
Segundo BloombergNEF, o Brasil pode produzir H2V a US$ 1,47/kg até 2030, entre os custos mais competitivos globalmente. A consultoria Hinicio posiciona o país como segundo mercado mais atrativo para H2V na América Latina em 2024, com trajetória ascendente para primeira posição em 2025.
Atualmente, apenas 5 MW estão operacionais, mas 72 MW já possuem decisão final de investimento e 10,8 GW encontram-se em fase de aprovação. O potencial até 2030 alcança 41 GW de capacidade instalada.
Considerações finais
O Brasil construiu fundações estratégicas excepcionais para liderança no mercado global de hidrogênio verde. A combinação de recursos naturais abundantes, marco regulatório robusto, investimentos internacionais massivos e ecossistema de inovação em expansão cria vantagem competitiva sustentável.
O sucesso, contudo, dependerá da execução disciplinada dos projetos anunciados, desenvolvimento da demanda doméstica e capacidade de agregar valor na cadeia produtiva. O momento é de cautela otimista: as bases estão estabelecidas, mas a construção do edifício energético do futuro exigirá resiliência, coordenação público-privada e visão estratégica de longo prazo.
